segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O paradoxo da transparência e a vida pública brasileira

Por mais que se amplie o consenso de que a transparência deve ser um valor fundamental da política e da gestão pública, mais parece que a política e a gestão pública estão eclipsadas. Esta metáfora é contra-intuitiva da metáfora da transparência. Pela idéia de transparência, joga-se luz sobre a política e ela se revela em seus efeitos e em suas práticas. Ao jogar luz sobre a política, a transparência funciona como uma espécie de desinfetante, capaz de limpar as sujeiras cotidianas praticadas na luta pelo poder. Nesse sentido, a transparência é fundamental ao combate à corrupção. É consensual hoje que o combate à corrupção se faz com maior transparência da gestão da coisa pública, submetendo-a ao juízo da sociedade e da cidadania. Submetida à transparência, a política purifica-se e renova-se.

O Brasil vive hoje uma espécie de paradoxo. Por mais que tenhamos ampliado a transparência da política e da gestão pública, a corrupção reproduz-se de modo a tornar-se cada vez mais uma prática corriqueira de nossos homens públicos. É preciso reconhecer que os poderes públicos ampliaram a transparência de suas gestões. Prestações de contas, divulgação pública do gasto e das receitas do Estado são cada vez mais comuns e necessários, mas não impactam satisfatoriamente a questão do controle da corrupção. O paradoxal desse processo é que a ampliação da transparência tornou a gestão pública mais onerosa e ampliou a margem de seus problemas estruturais. Em lugar de uma burocracia mais ágil e eficiente, temos no Brasil uma gestão pouco motivada, acuada e pouco cooperativa, porquanto tenha medo de que iniciativas que busquem ganhos de eficiência possam resultar em processos judiciais e crises políticas.

O consenso que se formulou hoje no Brasil em torno da idéia de transparência a tornou um fim em si mesmo. Sendo um fim em si mesmo, a transparência não é o melhor desinfetante, mas uma tecnologia de vigilância que inibe as boas iniciativas no setor público e ressalta as patologias institucionais. Como tecnologia de vigilância, a transparência não representa, no caso brasileiro, ganhos de eficiência, mas burocratização dos controles públicos que não necessariamente resultam em maior punição da corrupção.

A transparência resulta em uma histeria ética que destaca o problema da corrupção em nossa cultura atávica. O resultado é a idéia, de senso comum, de que todo político é ladrão, que a malandragem é nosso ethos cultural e de que o jeitinho é a regra. Enfim, de que não é errado praticar delinqüências na esfera pública, que podem ser redimidas no juízo das urnas. Reforçar esta concepção de senso comum é criar uma paralisia institucional que em nada contribui ao desenvolvimento do Brasil. Ao tornar a política mais visível ao público e, por sua vez, menos opaca, a transparência obscurece a atividade política, jogando-a ao mesmo inferno destinado aos criminosos. Criminaliza-se a política de maneira que ela se tornou assunto de páginas policiais.

A transparência, por si mesma, valoriza os fatos e a notícia. Mas não contribui para a busca de soluções efetivas. Valoriza a produção de uma histeria ética crescente, mas não contribui para o debate a respeito de como controlar a política. Precisamos reconhecer que o Brasil democrático produziu muitas inovações institucionais nesse sentido, como a criação da CGU, as inovações no TCU, a autonomia do Ministério Público e uma atenção do Judiciário ao problema da corrupção, mesmo que tardia. Estas inovações são louváveis, necessárias e representam ganhos à democracia. Porém, estas inovações institucionais são fragmentadas, representando mudanças pontuais e que carecem de um sentido mais forte de integração. Apesar das diferentes inovações que foram promovidas nos controles públicos no Brasil democrático, elas ainda carecem de um sentido de integração sistêmica, tendo em vista a constituição de um sistema positivo de fomento à probidade.

Criar um sistema de integridade significa o fato de que o controle da corrupção não é uma política de governo ou de iniciativas individuais, mas uma política de Estado, que deve ser pensada como estratégica para a construção da eficiência da gestão pública brasileira. Falta, ao Brasil, uma noção mais forte de integridade pública, que deve ser alimentada por uma política de Estado que não tolere a corrupção e não promova a impunidade. Dessa forma, a noção de transparência é pouco instrutiva, porque dela não se deriva a consolidação de um consenso de que a corrupção é nociva à legitimidade democrática, mas uma técnica de vigilância que afeta negativamente a gestão pública brasileira.

O governo Dilma acerta em querer fazer uma faxina em seus ministérios. É fundamental estabelecer a probidade nas relações com a coisa pública. Mas é necessário ir além da idéia de transparência. É fundamental alimentar um sentido de publicidade da gestão estatal, capaz de transcender a simples idéia da vigilância em direção a uma combinação de uma concepção mais sólida de eficiência da gestão com a probidade na vida pública. Publicidade, aqui, deve ser pensada não como a mera divulgação midiática da ação de governos, nem mesmo como a publicação de informações do Estado. É, antes disso, um princípio de autoridade democrática em que o público de cidadãos, em condições inclusivas e de igualdade, possa participar da gestão estatal e dela cobrar eficiência e responsabilidade. Dessa forma, é necessário pensar a corrupção não na dimensão da histeria ética que hoje pauta uma política do escândalo permanente, mas um sentido positivo de que a corrupção é controlável e de que a política não aceita oportunismos de qualquer ordem, tendo em vista um resgate da vida pública.

É fundamental, por conseguinte, renovar a agenda da reforma do Estado indo além da transparência em si mesma. É preciso renovar a agenda de reforma do Estado com o sentido da publicidade. Resgatar o papel do público é reforçar a democratização do Estado e não permitir que a política esvaia-se no noticiário. Para isto, é primordial reconhecer um papel mais presente da sociedade civil, alimentando soluções criativas que visem a outro caminho. Por este outro caminho, iniciativas como o da ficha limpa, jogada no limbo jurídico brasileiro, são bem-vindas, desde que não seja vítima de casuísmos e má compreensão dos interesses. Ou seja, se o caminho é o da maior publicidade, é fundamental resgatar a política e politizar — no melhor sentido possível da palavra — a questão da corrupção.

Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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