quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Weber, filósofo da modernidade

Nietzsche e Marx foram os pensadores do século XIX que mais se aproximaram daquilo que, em geral, vemos como o pensador típico do século XX. Eles fizeram filosofia relacionando-a com o pensamento social. Essa maneira de filosofar criou o que, no século XX, deu origem a uma filosofia diferente, a chamada filosofia social.

Ambos atacaram a filosofia, ou o que se entendia como filosofia até então, a metafísica. Arrebanhando para sua argumentação filosófica aspectos sociológicos, históricos e antropológicos, Nietzsche criou uma filosofia da história e uma tipologia, e se serviu de ambas para gerar uma abordagem da linguagem a partir da filosofia social. Por sua vez, Marx não queria falar da metafísica de um modo exclusivamente teórico; ele entendia que todo o ideal da boa vida, pregado pela filosofia desde seu nascedouro, se realizaria praticamente se houvesse uma revolução social para além das revoluções que ele assistiu – a revolução capaz de extinguir as classes sociais. Em outras palavras: a filosofia se realizaria por meio da história e, assim, chegaria ao fim.

Assim, quanto a alvos e até mesmo quanto aos meios, Nietzsche e Marx foram bem diferentes. Mas quanto ao “espírito do século XIX”, ambos comungaram da idéia de que o pensador social era o coração que deveria estar no peito do pensador tout court. Mais do que gostaríamos, Marx e Nietzsche viveram no século de Augusto Comte. A idéia de uma “ciência da sociedade” ou de uma “filosofia social” pairou nos céus do século XIX, e foi por aí que figuras como Marx e Nietzsche abriram para Sartre, Dewey, Adorno e tantos outros uma regra de conduta que, desde Sócrates, estava no encalço da filosofia. Cícero escreveu que Sócrates fez a filosofia descer dos Céus à Terra. Mas, o feito de Sócrates foi realmente um feito nas mãos de Marx e Nietzsche. Só então a filosofia cumpriu esse programa socrático de pouso.

A filosofia do século XIX, toda ela, foi uma filosofia mensurada a partir de sua proximidade ou distância para com o que parecia ser o seu destino, o de ser filosofia social. Aos filósofos do século XX não foi dado o direito de não se envolver com a vida social. Mesmo a filosofia analítica não conseguiu ficar alheia a isso. Tornou-se lugar comum no século XX ver o existencialismo, o pragmatismo, a Escola de Frankfurt, o estruturalismo, o neotomismo e tantas outras correntes da filosofia não terem apenas uma visão específica relativa ao conjunto chamado “ética e política”, mas, antes disso, tentarem se referir a problemas filosóficos típicos com a ajuda de parâmetros e elementos vindos da sociologia, antropologia e história.

Max Weber se insere perfeitamente no centro desse movimento, como figura que viveu a transição do século XIX para o XX. Todavia, ele fez uma espécie de caminho inverso da maioria dos pensadores que lhe deram asas ou que colheram nele algum alimento. Weber não foi o filósofo que se transformou em filósofo social, ele foi o sociólogo que tinha vocação para a filosofia – a filosofia social, com certeza.

Talvez por isso, Weber tenha se tornado o mais filosófico dos sociólogos, mas não pelo que queria escrever ou pelo que queria pesquisar. Ele assim se fez porque escreveu sociologia como se ela não pudesse ser outra coisa que não filosofia social. Talvez tenha sido Weber, e não Marx e Nietzsche, ou Comte e Durkheim, o verdadeiro fundador da filosofia social. Quem sabe não possamos dizer que Weber foi, antes que Dewey, Adorno ou Sartre, o verdadeiro criador da filosofia social. Weber agiu assim de dois modos. Primeiro, transformou seu neokantismo em uma epistemologia própria para sua sociologia. Segundo, transformou sua compreensão sociológica da modernidade em um quadro filosófico dos tempos modernos.

No que segue, falarei de modo breve sobre esses dois pontos. Serei altamente sucinto quanto ao primeiro ponto, o tema da epistemologia. Terei mais tempo, então, para a visão de Weber a respeito da modernidade. Pois penso que é exatamente neste segundo campo que Weber deixou sua marca de pensador social para a filosofia social que se espraiou pelo século XX.

II.

A respeito da epistemologia, Weber deixou claro que ele entendia que o porto seguro do conhecimento não era o ponto de partida, como afirmava o positivismo francês. O ponto de partida não deveria ser visto como o do agente cognitivo com esquemas capazes de se deparar com os “dados da realidade” de forma bruta. O ponto de partida teria de ser entendido como o do agente cognitivo colocando seus esquemas de apreensão sobre a realidade, e construindo então os “dados” a partir de esquemas já alterados pela própria forma interação com a realidade social.

Assim, a objetividade deveria ser grafada deste modo: “objetividade”, com aspas. Com isso, Weber queria mostrar que a concordância teórica ao final de uma investigação não era nada natural, e sim um esforço compreensivo grande, uma vez que agentes diferentes partiam de pontos de vista diferentes.

Na época de Weber, e também depois, esse seu neokantismo, esse seu, por assim dizer, idealismo, trouxe para o pensamento alemão uma marca característica. Weber ficou conhecido como historicista e sua sociologia passou a ter o nome de “compreensiva”. Os manuais se cansaram de expor tais características, e no decorrer do século evoluíram no sentido de apresentar Weber como o contraponto de Durkheim, para quem a sociologia era antes explicativa que compreensiva. Os “fatos sociais” deveriam ser tratados como “coisas”, como objetos naturais que, na visão positivista clássica, não poderiam ser “construídos”, e seriam realmente dados – dados brutos.

Talvez essa forma de Weber trabalhar, o da sociologia compreensiva, o tenha feito prestar mais atenção às cosmovisões de cada pessoa que quer “ler a realidade”. E, então, por isso mesmo, ele se viu impulsionado a tecer considerações sobre a modernidade como um tema singular. A própria concepção do que é o moderno seria, de certo modo, o ponto de partida de uma visão de mundo, exatamente o esquema que iria construir o “fato social”.

III.

Não há em Weber um texto cujo objetivo é descrever a modernidade. A compreensão que tiramos de Weber a respeito dos tempos modernos depende de uma leitura geral de vários de seus trabalhos. A visão da modernidade fornecida por Weber, e que é o que a filosofia do século XX mais absorveu, pode ser posta sobre quatro expressões: 1) “Separações das esferas de valor”; 2) “desencantamento do mundo”; 3) “burocratização das instituições”; 4) a modernidade cria “o especialista sem inteligência e o hedonista sem coração”.

Comentando cada uma dessas expressões, terminaremos por compor o quadro da modernidade fornecido por Weber para os filósofos do século XX e, ao mesmo tempo, estaremos fornecendo a filosofia social do pensador Max Weber.

1. Separação de esferas de valor

Weber não fala em esferas de valor em oposição a esferas de fatos. Weber trata todas as esferas de atuação humana como esferas de valor. O que são essas “esferas”? Simplesmente isto: são os campos das atividades humanas centrais. Basicamente três: a esfera da ciência e da técnica, a esfera da arte e a esfera da moral. Ele segue a tríade kantiana: conhecimento teórico, apreciação estética, normatividade ético-moral.

Weber lembra que todas essas esferas, no Ocidente pré-moderno, estão articuladas sob o imã da religião. A modernidade se configura quando essa imantação perde a força, e então cada uma dessas áreas da atividade humana ganha autonomia e se separa uma da outra. Há uma independência entre tais esferas. O próprio trabalho de Kant, ao falar do homem como ser transcendental, que é uma consciência que deve ser analisada em três campos, já se mostra ela mesma, tal obra, como fruto da modernidade.

Assim, a modernidade é a época em que o conhecimento e as teorias se fazem a partir de diretrizes intrínsecas, e não mais em função de uma cosmovisão específica, como a cosmovisão religiosa. Ao mesmo tempo, a moral passa a ser uma moral laica, antes regrada pela cidade e pela profissão do que por qualquer ordenação de doutrinas que seriam fornecidas pelas divindades. Não à toa, também em Kant, nasce a idéia de que a virtude é algo do âmbito específico da consciência, e que o ser moral não precisa de uma religião para se comportar moralmente. O equivalente ocorre com a arte, que passa a retratar o mundo e, enfim, a ficcionar o mundo. A idéia de uma arte que é arte por representar os feitos do cristianismo perdem a razão de ser. A arte fica em função do belo, e o belo é visto por Kant, por exemplo, como o que é da ordem do desinteresse.

Nos tempos modernos a ciência, a arte e a moral andam pelas suas próprias pernas. Paulatinamente se desgarram do que lhes dava unidade e, nesta unidade, sentido. A religião, em especial o cristianismo, é a fonte de sentido dessa unidade. A modernidade se faz como modernidade na medida em que essa unidade não se verifica mais na vida dos homens. E então, não raro, vários deles, individualmente, sentem o peso da perda de sentido. Do final do século XIX até os dias de hoje, encontramos pessoas que lamentam a “vida sem sentido” provocada pelos “tempos modernos”. O senso comum e a mentalidade popular sabem bem expressar isso que é a separação e autonomia das esferas de valor, como tudo isso é posto, em forma erudita, no pensamento social de Weber – sua caracterização da vida moderna.

2. Desencantamento do mundo

Às vezes encontramos leitores de Weber que exageram no entendimento da expressão “desencantamento do mundo”. Eles tomam a idéia de modernidade segundo a característica da “perda de sentido”, e então falam do “desencantamento do mundo” como uma espécie de sentimento subjetivo-individual de angústia, de desespero. Mas não é assim que Weber utilizou a expressão.

“Desencantamento do mundo” é, em Weber, a expressão que caracteriza uma situação geral que se abate sobre o homem que, se age segundo tal ordenação, pode ser chamado de homem moderno.

Em oposição ao homem não moderno, o moderno é aquele que olha para tudo que há ao seu redor, e também para si mesmo, como sendo regido ou por causa e efeito ou por razões. Tudo é naturalizado. Aquilo que não pode ser explicado ou compreendido na base de relações causais ou relações racionais não é misterioso. Uma vez que não pode ser explicado, isso se deve a duas circunstâncias: ou porque quem quer explicar não foi educado para explicar ou porque a ciência ainda não encontrou razões ou causas para tal. Então, ou por educação individual ou pelo progresso da ciência, o que deve ser explicado será, a qualquer momento, explicado. Deuses, gênios, demônios, forças extra-naturais e assim por diante caem fora do horizonte do homem, e então ele é, de fato, um homem moderno.

É claro que um homem moderno pode ter uma mentalidade arcaica. É isso que o faz tomar remédios e, ao mesmo tempo, fazer simpatias. Mas não é o fato de termos mais gente do primeiro tipo que gente do segundo tipo que definimos se estamos ou não na modernidade. O que vale é que o que impera nas nossas relações, como fator preponderante, é que levamos a sério a idéia de um mundo a nossa volta que não funciona senão por relações que não são nem um pouco mágicas. O encanto ou o enfeitiçamento do mundo cai por terra aos nossos olhos. Quando isso ocorre, a modernidade já bateu à nossa porta.

3. Burocratização das instituições

Em um mundo em que as relações entre os homens e as relações entre os homens e a as coisas são todas passíveis de serem expostas segundo um relato racional, por qual motivo se haveria de ficar sujeito ao acaso? As chances de previsibilidade e controle se tornam muito mais concretas, ou ao menos plausíveis. Para tal, as instituições privadas e públicas, as empresas e, enfim, o Estado, devem ser regrados segundo um plano administrativo.

O plano administrativo tipicamente moderno é potencializado pela racionalização das ações. A racionalidade que Weber toma como a racionalidade tout court é aquela da ação levada a cabo através dos meios mais econômicos. Então, a racionalização da administração é posta em prática na medida em que idiossincrasias e gostos pessoais ficam de lado, cedendo espaço para atividades de rendimento ótimo. Nada melhor que uma burocracia profissional, completamente impessoal, para realizar tal façanha.

A burocratização torna-se o caminho pelo qual as instituições e o Estado se permitem chamar de entidades racionais. O mundo do trabalho é produto e produtor desse tipo de racionalidade que, com a burocratização das relações, se torna um mundo que promete realizar o ideal de Comte: “prever para prover”. O mundo em que esse lema se torna verdadeiro é o mundo moderno.

4. Especialista sem inteligência, hedonista sem coração

As conseqüências psico-sociais da “perda de sentido” e da “burocratização” produzem o típico homem moderno, caracterizado por Weber como “o especialista sem inteligência e o hedonista sem coração”.

Essa figura típica é encontrada por nós em todos os lugares. Não raro, quando nos olhamos no espelho, somos capazes de nos reconhecermos nessa figura. Temos um saber profissional que se revela como um know how especial. Precisamos de ser experts em algo para sobrevivermos no mundo moderno. Isto é, o que nos faz aproveitáveis na vida moderna é nossa capacidade de sermos racionais ao máximo, e nossa profissão espelha isso. Ou somos aqueles que sabem mais de muito pouco, ou simplesmente somos chamados de diletantes e, então, somos colocados à margem do trabalho. Não temos que ter inteligência. Temos de ser experts.

Nossa condição de experts, em um mundo sem sentido, em que tudo é regido pela capacidade de fazermos a relações não saírem de seu traçado racional, nos tornamos capazes de viver o momento, sem grandes preocupações com o futuro. O futuro virá, e ele será bom, acreditamos nisso. Nossa crença está baseada na idéia de que nada pode ocorrer de diferente no mundo se seguirmos os procedimentos racionais e burocratizados. Então, cada minuto pode ser vivido, cada dia pode ser aproveitado, tudo que temos nas mãos é algo para aproveitarmos ao máximo e, então, descartarmos. Vivemos, sim, um tipo de hedonismo. Mas é um hedonismo caricato, pois nosso coração é incapaz de se regozijar com nossa ampliada capacidade de usufruir dos bens que geramos e novos caminhos que abrimos. Não temos o coração educado para a verdadeira doutrina do hedonismo.

Podemos ficar horas na praia, como nenhum outro homem do passado conseguiu ficar, uma vez que tinha de parar sua vida para voltar ao trabalho, ou seja, garantir os meios de sobrevivência; todavia, todo esse tempo que ficamos na praia, nos sentimos entediados se não temos nosso laptop conectado por meio de algum wireless. Nosso hedonismo é um sintoma moderno, não o aprendizado da doutrina de Epicuro.

IV.

Essas características apresentadas por Weber postas pelos sociólogos – bem mais do que pelos filósofos – como atreladas ao “paradigma do trabalho”, que seria o modelo teórico pelo qual teríamos de enxergar a sociedade moderna.

Entretanto, atualmente a filosofia social imagina que deve absorver o “paradigma da linguagem”, colocando em Banho-Maria o “paradigma do trabalho”. Não poderia ser diferente, uma vez que temos dúvida de se estamos, ainda, vivendo a modernidade. Associamos o “paradigma do trabalho” à modernidade. Agora, que o trabalho parece não ser o imã de nossa sociedade, e a idéia de trabalho parece não ajudar muito para descrever nossas relações sociais , alguns de nós diz que vivemos não só na sociedade pós-trabalho, mas na sociedade pós-moderna.

Todavia, não precisaríamos pensar em “paradigma do trabalho” ou “da linguagem”. Podemos pensar que ainda vivemos na modernidade ou que vivemos em uma situação pós-moderna. Essas questões, para o que quero dizer de Weber e de sua atualidade, são bem menos importantes do que pensam uma boa parte dos sociólogos.

Desde o início dos anos oitenta do século XX temos procurado saber se estamos ou não no campo que, até então, entendíamos ser o “campo moderno”. Mas, independentemente dos resultados desse debate, é difícil descartar essas quatro características postas acima, traçadas por Weber para falar da modernidade, como o que somos obrigados a manter na mira e entender se quisermos compreender o nosso mundo, seja lá qual for este mundo. Mesmo para aqueles que apostam que há traços pós-modernos em nossa vida ocidental que não podem mais ser negados, é difícil descartar esses elementos descritivos de Weber. A modernidade pode ir embora, pode desaparecer e, enfim, no campo teórico, podemos acreditar que o melhor seria deixar para trás o “paradigma do trabalho”. Mas, será que não podemos levar para o mundo pós-moderno esses elementos de Weber? Será que não temos que levar?

Essa pergunta faz sentido. E justamente por ela fazer sentido, nós podemos dizer que a filosofia social gerada por Weber tem uma sobrevida maior do que ele próprio, talvez, tenha imaginado que conseguiria. Esses quatro elementos, que Weber usou para descrever a modernidade, podem se readaptados para descrever uma sociedade em que o trabalho não é mais nem fato central nem categoria teórica fundamental. Não nos vemos obrigados a ficar rodando o cadáver do “paradigma do trabalho” para não deixar o espírito de Weber ir embora. Podemos enterrar o cadáver. Weber e sua caracterização da vida moderna parece, agora, não uma caracterização da vida moderna, e sim um panorama amplo que a filosofia social tem para oferecer para nossas reflexões acerca até mesmo de uma sociedade que já não pode mais ser descrita, exclusivamente, como sociedade moderna. É como se o moderno, em Weber, tivesse adquirido uma tipo de caráter mais amplo que o do “paradigma do trabalho” ou mesmo o da noção de modernidade. E se isso é correto, mais ainda, então, vamos ter Weber como filósofo – filósofo social, sem dúvida, mas, por isso mesmo, filósofo.

© 2009 Paulo Ghiraldelli Jr.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O paradoxo da transparência e a vida pública brasileira

Por mais que se amplie o consenso de que a transparência deve ser um valor fundamental da política e da gestão pública, mais parece que a política e a gestão pública estão eclipsadas. Esta metáfora é contra-intuitiva da metáfora da transparência. Pela idéia de transparência, joga-se luz sobre a política e ela se revela em seus efeitos e em suas práticas. Ao jogar luz sobre a política, a transparência funciona como uma espécie de desinfetante, capaz de limpar as sujeiras cotidianas praticadas na luta pelo poder. Nesse sentido, a transparência é fundamental ao combate à corrupção. É consensual hoje que o combate à corrupção se faz com maior transparência da gestão da coisa pública, submetendo-a ao juízo da sociedade e da cidadania. Submetida à transparência, a política purifica-se e renova-se.

O Brasil vive hoje uma espécie de paradoxo. Por mais que tenhamos ampliado a transparência da política e da gestão pública, a corrupção reproduz-se de modo a tornar-se cada vez mais uma prática corriqueira de nossos homens públicos. É preciso reconhecer que os poderes públicos ampliaram a transparência de suas gestões. Prestações de contas, divulgação pública do gasto e das receitas do Estado são cada vez mais comuns e necessários, mas não impactam satisfatoriamente a questão do controle da corrupção. O paradoxal desse processo é que a ampliação da transparência tornou a gestão pública mais onerosa e ampliou a margem de seus problemas estruturais. Em lugar de uma burocracia mais ágil e eficiente, temos no Brasil uma gestão pouco motivada, acuada e pouco cooperativa, porquanto tenha medo de que iniciativas que busquem ganhos de eficiência possam resultar em processos judiciais e crises políticas.

O consenso que se formulou hoje no Brasil em torno da idéia de transparência a tornou um fim em si mesmo. Sendo um fim em si mesmo, a transparência não é o melhor desinfetante, mas uma tecnologia de vigilância que inibe as boas iniciativas no setor público e ressalta as patologias institucionais. Como tecnologia de vigilância, a transparência não representa, no caso brasileiro, ganhos de eficiência, mas burocratização dos controles públicos que não necessariamente resultam em maior punição da corrupção.

A transparência resulta em uma histeria ética que destaca o problema da corrupção em nossa cultura atávica. O resultado é a idéia, de senso comum, de que todo político é ladrão, que a malandragem é nosso ethos cultural e de que o jeitinho é a regra. Enfim, de que não é errado praticar delinqüências na esfera pública, que podem ser redimidas no juízo das urnas. Reforçar esta concepção de senso comum é criar uma paralisia institucional que em nada contribui ao desenvolvimento do Brasil. Ao tornar a política mais visível ao público e, por sua vez, menos opaca, a transparência obscurece a atividade política, jogando-a ao mesmo inferno destinado aos criminosos. Criminaliza-se a política de maneira que ela se tornou assunto de páginas policiais.

A transparência, por si mesma, valoriza os fatos e a notícia. Mas não contribui para a busca de soluções efetivas. Valoriza a produção de uma histeria ética crescente, mas não contribui para o debate a respeito de como controlar a política. Precisamos reconhecer que o Brasil democrático produziu muitas inovações institucionais nesse sentido, como a criação da CGU, as inovações no TCU, a autonomia do Ministério Público e uma atenção do Judiciário ao problema da corrupção, mesmo que tardia. Estas inovações são louváveis, necessárias e representam ganhos à democracia. Porém, estas inovações institucionais são fragmentadas, representando mudanças pontuais e que carecem de um sentido mais forte de integração. Apesar das diferentes inovações que foram promovidas nos controles públicos no Brasil democrático, elas ainda carecem de um sentido de integração sistêmica, tendo em vista a constituição de um sistema positivo de fomento à probidade.

Criar um sistema de integridade significa o fato de que o controle da corrupção não é uma política de governo ou de iniciativas individuais, mas uma política de Estado, que deve ser pensada como estratégica para a construção da eficiência da gestão pública brasileira. Falta, ao Brasil, uma noção mais forte de integridade pública, que deve ser alimentada por uma política de Estado que não tolere a corrupção e não promova a impunidade. Dessa forma, a noção de transparência é pouco instrutiva, porque dela não se deriva a consolidação de um consenso de que a corrupção é nociva à legitimidade democrática, mas uma técnica de vigilância que afeta negativamente a gestão pública brasileira.

O governo Dilma acerta em querer fazer uma faxina em seus ministérios. É fundamental estabelecer a probidade nas relações com a coisa pública. Mas é necessário ir além da idéia de transparência. É fundamental alimentar um sentido de publicidade da gestão estatal, capaz de transcender a simples idéia da vigilância em direção a uma combinação de uma concepção mais sólida de eficiência da gestão com a probidade na vida pública. Publicidade, aqui, deve ser pensada não como a mera divulgação midiática da ação de governos, nem mesmo como a publicação de informações do Estado. É, antes disso, um princípio de autoridade democrática em que o público de cidadãos, em condições inclusivas e de igualdade, possa participar da gestão estatal e dela cobrar eficiência e responsabilidade. Dessa forma, é necessário pensar a corrupção não na dimensão da histeria ética que hoje pauta uma política do escândalo permanente, mas um sentido positivo de que a corrupção é controlável e de que a política não aceita oportunismos de qualquer ordem, tendo em vista um resgate da vida pública.

É fundamental, por conseguinte, renovar a agenda da reforma do Estado indo além da transparência em si mesma. É preciso renovar a agenda de reforma do Estado com o sentido da publicidade. Resgatar o papel do público é reforçar a democratização do Estado e não permitir que a política esvaia-se no noticiário. Para isto, é primordial reconhecer um papel mais presente da sociedade civil, alimentando soluções criativas que visem a outro caminho. Por este outro caminho, iniciativas como o da ficha limpa, jogada no limbo jurídico brasileiro, são bem-vindas, desde que não seja vítima de casuísmos e má compreensão dos interesses. Ou seja, se o caminho é o da maior publicidade, é fundamental resgatar a política e politizar — no melhor sentido possível da palavra — a questão da corrupção.

Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Cristóvão Colombo descobriu a América. FALSO !

Oficialmente, o título de “descobridor da América” pertence ao navegante genovês Cristóvão Colombo, mas ele não foi o primeiro estrangeiro a chegar ao chamado Novo Mundo. Além disso, o próprio Colombo nunca se deu conta de que a terra que encontrou era um continente até então desconhecido.

A arqueologia já revelou vestígios da passagem dos vikings pelo continente por volta do ano 1000. Leif Ericson, explorador que viveu na região da Islândia, chegou às margens do atual estado de Maine, no norte dos Estados Unidos, no ano 1003. Em 1010 foi a vez de outro aventureiro nórdico, Bjarn Karlsefni, aportar nos arredores de Long Island, na região de Nova York. Além disso, alguns pesquisadores defendem que um almirante chinês chamado Zeng He teria cruzado o Pacífico e desembarcado, em 1421, no que hoje é a costa leste dos Estados Unidos.

Polêmicas à parte, Cristóvão Colombo jamais se deu conta de que havia descoberto um novo continente. A leitura de suas anotações de bordo ou de suas cartas deixa claro que ele acreditou até a morte que tinha chegado à China ou ao Japão, ou seja, às “Índias”. É o que o navegador escreveu, por exemplo, em uma carta de março de 1493.

Mesmo nos momentos em que se apresenta como um “descobridor”, Colombo se refere aos arredores de um continente que o célebre Marco Polo – do qual foi leitor assíduo – já havia descrito. Em outubro de 1492, depois de seu primeiro encontro com nativos americanos, o explorador fez a seguinte anotação em seu diário de bordo: “Resolvi descer à terra firme e ir à cidade de Guisay entregar as cartas de Vossas Altezas ao Grande Khan”. Guisay é uma cidade real chinesa que Marco Polo visitara. Nesse mesmo documento, Colombo escreveu que, segundo o que os índios haviam informado, ele estava a caminho do Japão. Os nativos tinham apontado, na verdade, para Cuba.

Suas certezas foram parcialmente abaladas nas viagens seguintes, mas o navegador nunca chegou a pensar que aportara em um novo continente. Sua quarta viagem o teria levado, segundo escreveu, à província de “Mago”, “fronteiriça à de Catayo”, ambas na China.

Apesar disso, Colombo revestiu seus relatos com um tom profético. “Estou convencido de que se trata do paraíso terrestre”, disse a respeito da foz do rio Orinoco, no território das atuais Colômbia e Venezuela. Quando voltou à Europa, ele chegou a redigir um “livro de profecias”, no qual juntou citações bíblicas a textos de cosmografia e de profetas medievais numa tentativa de, aparentemente, relacionar o Novo Mundo aos reinos míticos de Társis e Ofir, citados no Antigo Testamento. A obra não chegou a ser terminada.

Somente nos últimos anos de sua vida o genovês considerou a possibilidade de ter descoberto terras realmente virgens. Mas foi necessário certo tempo para que a existência de um novo continente começasse a ser aceita pelos europeus. Américo Vespúcio foi um dos primeiros a apresentar um mapa com quatro continentes. Mais tarde, em 1507, a nova terra seria batizada em homenagem ao explorador italiano. Um ano depois da morte de Colombo, que passou a vida sem entender bem o que havia encontrado.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

DISCURSO E RACISMO

O racismo não é inato, e sim aprendido. Portanto, deve haver meios para esse processo de aquisição ideológica e prática. As pessoas aprendem a ser racistas com seus pais, seus pares, na escola, com a comunicação de massa, do mesmo modo que com a observação diária e a interação nas sociedades multiétnicas.
Esse processo de aprendizagem é amplamente discursivo, isto é, baseado na conversação e no contar de histórias diárias, nos livros, na literatura, no cinema, nos artigos de jornal, nos programas de TV, nos estudos científicos, entre outros. Muitas das práticas de racismo cotidianas podem até certo ponto ser aprendidas pela observação, mas até mesmo estas precisam ser explicadas, legitimadas ou sustentadas discursivamente de outro modo. Em outras palavras, a maioria dos membros dos grupos dominantes aprende a ser racista devido às formas de texto e de fala numa ampla variedade de eventos comunicativos.
Muito do que os grupos dominantes “sabem” ou acreditam sobre a etnia dos Outros foi formulada, mais ou menos explicitamente, em inúmeras conversações, histórias, reportagens de jornais, livros didáticos e discurso político. É sobre essa base que as pessoas formam suas próprias opiniões e atitudes, e, a menos que haja boas razões para desviar do consenso do grupo, a maior parte dos membros reproduzirá o status quo étnico e adquirirá as ideologias dominantes que os legitime.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Bullying: problema real

Encarado como um problema grave e universal, o bullying começa a se transformar também em um objeto de um número cada vez maior de estudos e pesquisas. Confira nossa nova matéria e participe dos debates na rede!

Recentemente, o termo inglês "bullying" foi incorporado com sucesso ao vocabulário de professores, coordenadores pedagógicos e estudantes de todo o Brasil. O conceito, derivado da palavra “bully” (valentão, em português), pode ser definido como qualquer atitude agressiva (física ou emocional) exercida por um ou mais indivíduos, tendo como finalidade a intimidação, humilhação ou agressão da vítima. O assunto, no entanto, embora incorporado à agenda pedagógica brasileira, está longe de ser conhecido em suas especificidades. Por muito tempo, a prática do “bullying” foi subestimada ou mesmo ignorada por professores, pais e especialistas em educação. Esse cenário só mudou nos últimos anos, quando pesquisadores e os meios e comunicação passaram a publicar estudos que mostravam que esse tipo de violência é muito mais antiga, universal e danosa do que se imaginava.

Em 2011, a discussão sobre “bullying” foi intensificada com os trágicos acontecimentos ocorridos no dia 7 de abril, na Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no bairro de Realengo, Rio de Janeiro. Na ocasião, Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, entrou armado nas dependências da escola e disparou contra diversos alunos . No total, doze pessoas foram mortas. Wellington – um ex-aluno da escola – cometeu suicídio em seguida. Dias depois, as autoridades descobriram vídeos e uma carta do atirador, no qual ele dava como justificativa as agressões sofridas por ele em sua época de estudante. A justificativa dividiu os especialistas, provocou polêmicas na esfera pública, mas independente do que se disse a respeito, o “bullying” consolidou-se de vez como uma questão verdadeiramente nacional.

O que motiva o comportamento agressivo de certos adolescentes ainda não é algo totalmente conhecido. Muitos educadores, porém, acreditam que o fenômeno pode estar intimamente associado à maneira como as diferenças no ambiente escola (físicas, sociais, materiais, emocionais, até mesmo verbais) são conhecidas e enfrentadas pelos alunos. A escola, por excelência, é a primeira experiência do ser humano com a sociedade não-familiar. É na escola que a criança se depara pela primeira vez com o diferente, com o assimétrico. Quando este contato não é positivo, pode haver dano à sociabilidade, algo que é potencializado durante a adolescência, quando o jovem está em pleno processo de construção identitária. É neste momento que pode ocorrer o comportamento agressivo e/ou de submissão à agressão do outro.

É preciso dizer, no entanto, que a escola não é a única explicação para o problema. O “bullying” também pode estar relacionado a traumas pessoais bastante específicos, problemas familiares ou ainda a insucessos (de aprendizagem ou de relacionamentos) da criança e do adolescente no decorrer de sua formação. Isso, porque a prática do “bullying” quase sempre está associada à necessidade de afirmação social, à necessidade de retomar um equilíbrio perdido ou nunca alcançado. Uma pesquisa da Universidade da Califórnia publicada no American Sociological Review concluiu que o "bullying" é praticado como uma forma de ganhar popularidade, sendo seus principais alvos garotos com status médio ou alto entre seus colegas. No total, foram ouvidos 3.722 alunos dos últimos anos do ensino fundamental de três condados no Estado da Carolina do Norte, nos Estados Unidos.

Pesquisas ajudam a entender melhor o fenômeno

Com a calorosa discussão pública sobre o “bullying”, os pesquisadores brasileiros vêm se dedicando cada vez mais ao estudo do fenômeno. E não se trata apenas de pesquisadores da área da educação. De muitas formas, o assunto vem sendo visto também como uma questão na área de saúde. Prova disso, é o livro "Bullying - mentes perigosas nas escolas", da médica Ana Beatriz Barbosa Silva. O livro se tornou um verdadeiro best-seller ao vender mais de 400.000 cópias no Brasil. No livro, Ana Beatriz faz um inventário de vários tipos de violência e mostra como esta prática está associada à desigualdade de poder ou também à baixa auto-estima.

As pesquisas mostram outros aspectos interessantes do problema. Os próprios alunos estão preocupados com o "bullying". Pelo menos é que aponta um estudo da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.Entre os meses de janeiro de 2008 e janeiro de 2010, 20% das dúvidas no Disque-Adolescente eram sobre dificuldades de relacionamento na escola por causa do bullying.Dúvidas sobre anticoncepção também são freqüentes, respondendo por 33,2% das ligações feitas ao serviço.Sexualidade responde por 19,2% e obstétricas, 21,2%.

Outra pesquisa sobre o tema derruba um mito: o de que o "bullying" está atrelado a uma determinada classe social. Quem desmente esse tipo de avaliação é um estudo apresentado nesta segunda-feira pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas pela Infância, realizado em parceria com a FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, na Argentina. De acordo com o trabalho "Clima, conflitos e violência na escola", diferentemente do que se imaginava, os estudantes das classes mais vulneráveis socialmente não são necessariamente os mais violentos nas escolas.Nas escolas privadas pesquisadas, 13,2% dos alunos disseram que já foram alvos da crueldade de seus companheiros e 15,1% foram satirizados por alguma característica física. Já nas públicas da pesquisa, esses números são de 4,3% e 12,9%, respectivamente.

No Brasil, por sua vez, o IBGE preparou uma espécie de "mapa do bullying". Segundo o estudo do órgão, Brasília está no primeiro lugar na prática de "Bullying". 35,6% dos estudantes entrevistados do DF disseram ser vítimas constantes da agressão. Belo Horizonte, em segundo lugar com 35,3%, e Curitiba, em terceiro lugar com 35,2 %, foram, junto com Brasília, as capitais com maior freqüência de estudantes que declararam ter sofrido bullying alguma vez.

FONTE:
http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/arquivo-cafe-historia-318

sábado, 24 de outubro de 2009

"Papai, então me explica para que serve a História", March Bloch

Responder aos jovens para que serve a História requer oferecer-lhes condições para que possam refletirem criticamente sobre suas experiências de viver a história e para identificarem as relações que essas guardam com experiências de outro sujeitos em tempos, lugares e culturas diversas das suas.
Os jovens vivem e participam de um tempo de múltiplos acontecimentos que necessitam serem compreendidos na sua historicidade. No entanto, a velocidade, variedade e quantidade de informações, possibilitada pelo avanço tecnológico dos últimos tempos, dificultam a compreensão da historicidade. O acúmulo e a velocidade dos acontecimentos afetam os referentes temporais e identitários e também fazem com que os jovens vivam, segundo Hobsbawm, “numa espécie de presente contínuo”, com fracos vínculos entre a experiência pessoal e a das gerações passadas.
Auxiliar os jovens a construírem o sentido do estudo da História constitui, pois, um desafio que requer ações educativas articuladas. Trata-se de poder-lhes oferecer um contraponto que possa permitir uma ressignificação de suas experiências tanto no contexto como na duração histórica da qual fazem parte, e também apresentar os instrumentos cognitivos que os auxiliem a transformar os acontecimentos contemporâneos e aqueles do passado em problemas históricos a serem estudados e investigados.
Essa nova versão dos parâmetros curriculares de História, procura buscar a sintonia com os anseios dos professores quanto a suas visões a respeito das necessidades de formação de jovens do nosso tempo e com suas concepções a respeito da História e do seu ensino.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Urgência de um Ethos Mundial: o Ethos Mundial de que precisamos, segundo Leonardo Boff


Três problemas suscitam a urgência de uma ética mundial: a crise social, a crise do sistema de trabalho e a crise ecológica, todas de dimensões planetárias.


Problemas globais, soluções globais

Em primeiro lugar, a crise social. Os indicadores são notórios e não precisamos aduzi-los. A mudança da natureza da operação tecnológica, mediante a robotização e a informatização, propiciou uma produção fantástica de riqueza. Ela vem apropriada, de forma altamente desigual, por grandes corporações transnacionais e mundiais que aprofundam ainda mais o fosso existente entre ricos e pobres. Essa acumulação é injusta, porque pessimamente distribuída. Os níveis de solidariedade entre os humanos decaíram aos tempos da barbárie mais cruel.

Tal fato suscita um fantasma aterrador: uma bifurcação possível dentro da espécie humana.

Por um lado, estrutura-se um tipo de humanidade opulenta, situada nos países centrais, que controla os processos científico-técnicos, econômicos e políticos e é o oásis dos países periféricos onde vivem as classes aquinhoadas. Todos esses se beneficiam dos avanços tecno-científicos, da biogenética e da manipulação dos recursos naturais e vivem em seus refúgios por cerca de 120/130 anos, tempo biológico de nossas células. Por outro, a velha humanidade, vivendo sob a pressão de manter um status de consumo razoável ou simplesmente na pobreza, na marginalização e na exclusão. Esses, os deserdados e destituídos, vivem como sempre viveu a humanidade e alcançam no máximo a média de 60-70 anos de expectativa de vida.

Em segundo lugar, a crise do sistema de trabalho: as novas formas de produção cada vez mais automatizadas dispensam o trabalho humano; em seu lugar, entra a máquina inteligente. Com isso, destroem-se postos de trabalho e tornam-se os trabalhadores descartáveis, criando um imenso exército de excluídos em todas as sociedades mundiais.

Tal mudança na própria natureza do processo tecnológico demanda um novo padrão civilizatório. Haverá desenvolvimento sem trabalho. A grande questão não será o trabalho – esse no futuro poderá ser o luxo de alguns – mas o ócio. Como passar de uma sociedade de pleno emprego para uma sociedade de plena atividade que garanta a subsistência individual? Como fazer com que o ócio seja criativo, realizador das virtualidades humanas? Libertado do regime assalariado a que foi submetido pela sociedade produtivista moderna, especialmente capitalista, o trabalho voltará à sua natureza original: a atividade criadora do ser humano, a ação plasmadora do real, o demiurgo que transporá os sonhos e as virtualidades presentes nos seres humanos em práticas surpreendentes e em obras expressivas do que seja e do que pode ser a
criatividade humana. Estamos preparados para esse salto de qualidade rumo à plena expressão humana?

Em terceiro lugar, emerge a crise ecológica. Os cenários também são de amplo conhecimento, divulgados não apenas por reconhecidos institutos de pesquisa que se preocupam com o estado global da Terra, mas também pela própria Cruz Vermelha Internacional e por vários organismos da ONU. Nas últimas décadas, temos construído o princípio da autodestruição. A atividade humana irresponsável em face da máquina de morte que criou pode produzir danos irreparáveis à biosfera e destruir as condições de vida dos seres humanos. Numa palavra, vivemos sob uma grave ameaça de desequilíbrio ecológico que poderá afetar a Terra como sistema integrador de sistemas.

Ela é como um coração. Atingido gravemente, todos os demais organismos vitais serão lesados: os climas, as águas potáveis, a química dos solos, os microorganismos, as sociedades humanas. A sustentabilidade do planeta, urdida em bilhões de anos de trabalho cósmico, poderá desfazerse. A Terra buscará um novo equilíbrio que, seguramente, acarretará uma devastação fantástica de vidas. Tal princípio de autodestruição convoca urgentemente outro: o princípio de corresponsabilidade por nossa existência como espécie e como planeta. Se queremos continuar a aventura terrenal e cósmica, temos de tomar decisões coletivas que se ordenam à salvaguarda do criado e à manutenção das condições gerais que permitam a evolução seguir seu curso ainda
aberto.

A revolução possível em tempos de globalização

A causa principal da crise social se prende à forma como as sociedades modernas se organizaram no acesso, na produção e na distribuição dos bens da natureza e da cultura. Essa forma é profundamente desigual, porque privilegia as minorias que detêm o ter, o poder e o saber sobre as grandes maiorias que vivem do trabalho; em nome de tais títulos se apropriam de maneira privada dos bens produzidos pelo empenho de todos. Os laços de solidariedade e de cooperação não são axiais, mas o são o desempenho individual e a competitividade, criadores permanentes de apartação social com milhões e milhões de marginalizados, de excluídos e de vítimas.

A raiz do alarme ecológico reside no tipo de relação que os humanos, nos últimos séculos, entretiveram com a Terra e seus recursos: uma relação de domínio, de não reconhecimento de sua alteridade e de falta do cuidado necessário e do respeito imprescindível que toda alteridade exige. O projeto da tecnociência, com as características que possui hoje, só foi possível porque, subjacente, havia a vontade de poder e de estar sobre a natureza e não junto dela e porque se destruiu a consciência de uma grande comunidade biótica, terrenal e cósmica, na qual se encontra inserido o ser humano, juntamente com os demais seres.

Essa constatação não representa uma atitude obscurantista em face do saber científi co-técnico, mas uma crítica ao tipo de saber científico-técnico e à forma como ele foi apropriado dentro de um projeto de dominium mundi. Este implica a destruição da aliança de convivência harmônica entre os seres humanos e a natureza, em favor de interesses apenas utilitaristas e parcamente solidários. Não se teve em conta a subjetividade, a autonomia e a alteridade dos seres da própria natureza.

Importa, entretanto, reconhecer que o projeto da tecnociência trouxe incontáveis comodidades para a existência humana. Levou-nos para o espaço exterior, criando a chance de sobrevivência da espécie homo sapiens/demens em caso de eventual catástrofe antropológica. Universalizou formas de melhoria de vida (na saúde, na habitação, no transporte, na comunicação, etc.) como jamais antes na história humana. Desempenhou, portanto, uma função libertadora inestimável.

Hoje, entretanto, a continuação desse tipo de apropriação utilitarista e antiecológica poderá alcançar limites intransponíveis e daí desastrosos. Atualmente, para conservar o patrimônio natural e cultural acumulados, devemos mudar. Se não mudarmos de paradigma civilizatório, se não reinventarmos relações mais benevolentes e sinergéticas com a natureza e de maior colaboração entre os vários povos, culturas e religiões, dificilmente conservaremos a sustentabilidade necessária para realizar o projeto humano, aberto para o futuro e para o infinito.

Para resolver esses três problemas globais, dever-se-ia, na verdade, fazer uma revolução também global. Entretanto, assim nos parece, o tempo das revoluções clássicas, havidas e conhecidas, pertence a outro tipo de história, caracterizada pelas culturas regionais e pelos estadosnações.

Para tal revolução global, far-se-ia necessária uma ideologia revolucionária global, com
seus portadores sociais globais que tivessem tal articulação, coesão e tanto poder que fossem capazes de se impor a todos. Ora, tal situação não é dada nem possivelmente dar-se-á aproximadamente.

E os problemas gritam por um encaminhamento, pois sem ele poderemos ir ao
encontro do pior.

A saída que muitos analistas propõem e que nós assumimos – é a razão de nosso texto – é encontrar uma nova base de mudança necessária. Essa base deveria apoiar-se em algo que fosse realmente comum e global, de fácil compreensão e realmente viável. Partimos da hipótese de que essa base deve ser ética, de uma ética mínima, a partir da qual se abririam possibilidades de solução e de salvação da Terra, da humanidade e dos desempregados estruturais.

Nessa linha dever-se-á, pois, fazer um pacto ético, fundado não tanto na razão ilustrada, mas no pathos, vale dizer, na sensibilidade humanitária e na inteligência emocional expressas pelo cuidado, pela responsabilidade social e ecológica, pela solidariedade generacional e pela compaixão, atitudes essas capazes de comover as pessoas e movê-las para uma nova prática histórico-social libertadora. Urge uma revolução ética mundial.

Tal revolução ética deve ser concretizada dentro da nova situação em que se encontram a Terra e a humanidade: o processo de globalização que configura um novo patamar de realização da história e do próprio planeta. Nesse quadro, deve emergir a nova sensibilidade e o novo ethos, uma revolução possível nos tempos da globalização.

Por ethos, entendemos o conjunto das inspirações, dos valores e dos princípios que orientarão as relações humanas para com a natureza, para com a sociedade, para com as alteridades, para consigo mesmo e para com o sentido transcendente da existência: Deus. Como veremos ao longo de nossas reflexões, esse ethos não nasce límpido da vontade, como Atena nasceu toda armada da cabeça de Júpiter. Mas toda ética nasce de uma nova ótica. E toda nova ótica irrompe a partir de um mergulho profundo na experiência do Ser, de uma nova percepção do todo ligado, religado em suas partes e conectado com a Fonte originária donde promanam todos os entes. (BOFF, 2000).